Pierre de Laforge, por volta de 1834. Na Bahia, embora a Tipografia
de Manoel Antônio da Silva Serva, a primeira editora particular
do Brasil, já publicasse em fascículos, em 1813, o
que seria a 3ª edição do vol. 1 da Viola de Lereno,
reconhecidamente uma coleção de textos de cantigas
(modinha, lundus), a impressão de música parece ser
fenômeno das litografias e tipografias da segunda metade do
século XIX. Coletar esse material em arquivos, bibliotecas,
museus, coleções particulares, estabelecer cronologias,
estudá-lo à luz da crítica textual, classificá-lo,
verificar contextos, enfim, problematizá-lo para a geração
de estudos de vários tipos é o que esta pesquisa pretende.
Estão aqui mais de quatrocentas e vinte obras, reunidas com dificuldade,
algumas em condições de conservação
que bem estimaríamos fossem melhores. Alguns periódicos
musicais (não somente o Rio de Janeiro Imperial os publicava)
estão incluídos, embora longe de séries completas.
Cuidavam de algo comparável ao "literário adubo"
de que falava o Visconde da Pedra Branca (1850), referindo-se à
prosa de ficção baiana que ia surgindo, em folhetins
de jornal, para o entretenimento e edificação das
senhoras. Faltam inteiramente os libretti de ópera que a
crônica de Silva Lima, entretanto, fixou. Ambrosio Ronzi os
produziu - italiano de um lado, português de outro - para
facilitar o entendimento dos enredos das óperas regularmente
produzidas a partir de 1845, no Teatro São João .
Eventualmente, mães de jovens cantoras se gabavam das filhas
cantarem apenas em italiano, mesmo que não entendessem nada
do que diziam. Os espetáculos atraiam pessoas que vinham
até do Recôncavo, de véspera, em canoas, e que
às vezes pernoitavam no próprio Teatro. Tampouco eram
excluídos os mais humildes, como a velha Cunca, a acreditar
nas palavras carinhosas de Esther Pedreira falando da servidora
da família, doublé de apreciadora do gênero,
fazendo soar suas chinelas na torrinha do São João.
Obras teóricas foram também publicadas. A Artinha
Mussurunga ainda o era na Bahia, em 1905, pela Imprensa Econômica.
Segundo Manuel Querino, houve um Compêndio de Música
cuja primeira edição é de 1834, e uma segunda
edição de 1846, "dedicado ao seu amigo e condiscípulo,
Dr. Francisco Antonio d'Araújo, um dos mais abalizados jurisconsultos
de seu tempo e exímio flautista". Outras artinhas surgidas
depois da guerra do Paraguai, "de Aragão, do padre Santana,
de Santini e de outros" são acerbamente criticadas por
Guilherme de Melo, possivelmente com razão, na parte mais
provinciana de A Música no Brasil, e tidas em parte como
responsáveis pela decadência que julgava presenciar.
Nada conseguimos saber sobre elas, nem sequer se foram impressas.
É baiana, aliás, A Música no Brasil e publicada
na Tipografia do São Joaquim, em 1908. Esta importantíssima
primeira história da música brasileira, criticável
pelo seu provincianismo, torna-se por isto mesmo ainda mais significativa
para nós. Além disso, a precedê-la há
apenas a contribuição "L'Art", de E. da
Silva Prado, em volume preparado por Santa-Anna Nery, Le Brésil en 1889, para a Exposição Universal de Paris, sem
dúvida também importante, mas de pequena densidade.
Nossa lista de impressores e de editores, embora provisória, já reune mais de 120 registros.
Distribuímos as variantes de nomes de litografias e tipografias
e de outros agentes de publicação em núcleos,
por semelhança de nomes ou de localização.
Esses núcleos já somam mais de quarenta, oriundos de 12 localidades, entre brasileiras e européias. Muitas dessas
firmas terão tido existência modesta. Um competente
copista, de caligrafia inconfundível, com sua copistaria
instalada em endereço que nos alcançou, como ocorre
com Balduino dos Santos Oliveira, por exemplo, falecido em 1890,
enveredou naturalmente pelos caminhos da impressão de música.
Era também compositor de modinhas e músico competente.
Homem de cor, deve ter tido de lutar dignamente por uma ascensão
social que não lhe seria fácil, inclusive associando-se
a Henrique Albertazzi, italiano de méritos reconhecidos no
Brasil e em Salvador, na publicação de periódicos.
Seria Balduino o fac-totum; Albertazzi o selecionador do material
a ser publicado. São figuras a merecerem elas próprias
um estudo. A assimetria que representam, uma associação
entre fama e trabalho, parece algo que se reproduz em diferentes
periódicos baianos. Outros são apenas litógrafos
ou tipógrafos circunstancialmente imprimindo música.
Careciam de conhecimento musical para produzirem registros corretos.
Ao contrário, um M. J. D'Araujo parece ter contado com a
preferência de muitos compositores, prestando serviço
consistentemente de boa qualidade. Não apenas os litógrafos
e tipógrafos nos interessam, mas também os ilustradores.
Aqui se vai desde as ilustrações mais canhestras a
pequenas obras de arte. Empresas de maior porte e mais duradouras
devem ser objeto de estudo por via de registros porventura existentes
na Junta Comercial de Salvador. Poderão ajudar nos problemas
de datação que ainda nos desafiam. Enfim, não
se pretende que o levantamento dos impressos musicais baianos esteja
esgotado. Pelo contrário, a freqüência baixa de
obras com exemplares duplicados nos dá a certeza de que apenas
levantamos uma ponta do tapete, mesmo que esta ponta já nos
proporcione uma amostra significativa. Não devemos entreter
a ilusão, porém, de que o resto dessa produção
esteja ainda disponível, à nossa espera, indefinidamente.
Há pressa, portanto, e este trabalho não se encerra
aqui. Como pesquisa documental, a preocupação imediata
é a do resgate do acervo. Este será então o gerador
de mil pesquisas. Contudo, os esforços dos atuais e futuros
pesquisadores só farão sentido ao propiciarem accesso
ao público do material coletado e estudado, por via de boas
execuções. Trata-se de uma diversificada produção
musical, até mesmo com alguns tesouros, quase totalmente
esquecida. Refletiu, de maneira particularmente sensível,
as alegrias, as dores e preocupações das gerações
de nossos avós, no século entre 1850 e 1950, de que
nos ocupamos.
Fundamentação
Na perspectiva das culturas musicais do mundo, poder-se-ia talvez
afirmar que processos "naturais" de transmissão
seriam fundamentalmente os da via oral e aural, sutilmente distintas
entre si, as pessoas aprendendo não tanto pelo que lhes é
dito ou cantado, mas pelo que diretamente ouvem.
Na verdade, a transmissão é um processo complexo no
qual o conhecimento musical pode ser modificado ou mantido. Inovações
(ou não), reavaliações, questões de
identidade, podem levar a substituições que, se ocorrem,
dependem de aceitação social para que sejam implementadas
e se integrem naquilo que constitui a música de um povo.
A impressão musical, um caso particular da difusão,
depende da existência de sistemas de notação.
E estes, por sua vez, se prendem a aspectos tão diversos
quanto os de elaboração, registro e execução
de obras que não sejam predominantemente improvisadas. Mas,
a despeito do quão importante a notação tem
sido para nossa cultura musical artística, com seu conceito
de "composição", ela não é
essencial ao processo musical, ou é até mesmo destituída
de sentido nas culturas orais, não quirógrafas, ou
nas que usem notação para fins teóricos, não
para execução ou registro, como a indiana. Se usada
para a execução, porém, é provável
que influa nos processos mentais dos músicos e, por seu intermédio,
no de seus ouvintes. Para uma cultura oficial brasileira paradoxal
e preguiçosa em relação às artes e à
música, em particular, a existência da notação
tornou-a sinônimo de erudição e de inacessibilidade,
o que é absurdo desde quando tudo que música essencialmente
requer é que seja ouvida.
Uma imprensa musical não seria possível e sustentável
sem uma clientela de leitores e consumidores de música cujo
gosto fosse atendido. No caso baiano e no período em apreço,
isto quase necessariamente resulta em música de salão,
além de hinos patrióticos e religiosos e peças
de virtuosismo. Não raro há lugar também para
homenagens mais ou menos interessadas. Não há, por
força, uma subordinação do estético,
mas este também se amolda ao bom ou mau gosto da época,
a exemplo de alguns paroxismos mórbidos da modinha ou, pior
ainda, dos melodramáticos recitativos. Partituras mais ambiciosas,
porém tendem a permanecer em manuscrito, à espera
de patrocínio oficial para publicação a fundo
perdido, algo no mínimo caprichoso sem uma política
editorial e cultural lúcida definida para tal fim.
A situação da Bahia, como a de outras províncias
(Pernambuco, Pará, São Paulo), em que uma impressão
musical era possível, o fenômeno parece ter tendido
a uma consolidação nas últimas décadas
do Século 19, consolidação efêmera para
a maioria. À proporção que o parque gráfico
de São Paulo se consolidava (apesar do início tardio,
em torno de 1863), a incipiente impressão musical das demais
províncias (estados, com a primeira Constituição
republicana, de 1891) ali mais e mais se concentraria, inclusive
com o esvaziamento do Rio de Janeiro. Fatores múltiplos devem
ser lembrados: o advento do fonógrafo, desde 1889, eventualmente
do disco e o enorme impacto da radiodifusão. A
Rádio Sociedade da Bahia, PRA-4, por exemplo, já existia por
volta de 1924, em data muito próxima à das primeiras
emissoras cariocas. Enquanto função de entretenimento,
o indispensável piano que dera seus primeiros passos na Bahia
por volta de 1810, com energia suficiente para alcançar os
engenhos do Recôncavo de canoa, não cederia de vez
os seus espaços, mas começaria a competir com as geladeiras
e os automóveis do surto industrial brasileiro pós-Juscelino,
sem sequer caber nos elevadores dos prédios que mudaram o
perfil de cidades antigas como Salvador. Essa relação
estreita entre o que se publicava e a clientela de consumidores
faz dos impressos testemunhos eloqüentes dos acontecimentos
do presente, sejam de que ordem forem: sociais, políticos,
religiosos, anedóticos, modas e vogas, conseqüentemente
documentos de interesse para a história da Bahia. Nem o hino
das comemorações e homenagens ao Senhor do Bonfim,
em torno do Dois de Julho de 1923, centenário da data maior
da Bahia, escapa a isso. Não um poeta, mas dois, recebem
solicitação de um hino: Pethion de Villar [Egas Moniz
Barreto de Aragão] (1870-1924) e Arthur de Salles (1879-1952),
ambos excelentes, o segundo quase genial; o primeiro a pedido de
um membro da Irmandade do Senhor do Bonfim (o médico e professor
Dr. José Eduardo Freire de Carvalho Filho, também
seu colega); o segundo, por semelhante requisição
do prefeito de Salvador (Dr. Manuel Duarte de Oliveira). O poema
de Pethion, considerado oficial, foi musicado pelo tenente da Polícia
Militar de Salvador e mestre de banda, João Antônio
Wanderley (1879-1927) e conferiria, por decisão de dom Tomé
Jerônimo da Silva, arcebispo de Salvador e primaz do Brasil,
"cem dias de indulgências a quem o cantasse". Não
obstante, o maestro e compositor Remígio Domenech (injustamente
esquecido das enciclopédias e dicionários de música)
também o musicaria, contribuindo para o imbróglio.
Sua versão foi executada em festa solene, perante o primaz,
terminada com bênção papal, no dia 8 de julho,
o seguinte à grande procissão de quase nove horas
que trouxera de volta a imagem do Senhor do Bonfim à sua
basílica. Dali até então jamais saíra,
exceto em casos de calamidade pública. A Mesa Administrativa
da Devoção ao Senhor do Bonfim a princípio
negara a solicitação do governador Seabra de que a
imagem fosse levada à Igreja da Vitória, para permanecer
de 3 a 7 de julho, em função dos festejos do centenário
da data da Bahia, gerando dois cortejos cívico-religiosos
de impressionantes proporções. Seabra amargava um
1923 cheio de dificuldades, inclusive com a morte de Rui Barbosa,
de quem nem sempre tinha sido aliado. Ao ceder, a Mesa decidiu aderir
ao regozijo, mas à sua maneira, marcando sua festa para o
dia 8, após a volta. Já o texto de Arthur de Salles,
em compensação, foi também musicado por Wanderley.
Em suma, temos três hinos de dois compositores e de dois poetas
diferentes, quando um seria suficiente. Como pano de fundo, o governo
de Seabra, em crepúsculo turbulento, buscava num evento popular
deter o curso de uma derrota que viria contra Góes Calmon,
seu sucessor no governo do Estado. Curiosamente, o hino que prevaleceu
na memória popular é o de Arthur de Salles, hoje definido
arbitrariamente como hino oficial da Bahia, com manifesto desagrado
de algumas denominações religiosas não católicas.
Categorias utilizadas para os impressos
Estaremos distinguindo música "impressa" na Bahia,
de música "editada" na Bahia, as duas categorias
positivas integrando o corpus das "publicações"
baianas. O próprio conceito de publicação é
mais complexo do que parece, envolvendo a intenção
de distribuição geral, face ao que restrições
muito conservadoras podem ser criadas, a mera disponibilidade não
sendo suficiente. Não nos interessa aqui um ponto de vista
tão restrito. Para o conceito de "edição"
estamos adotando o quarto significado do verbete do Aurélio
2001: "Publicação de livros, revistas, jornais,
gravuras, partituras, discos, softwares, etc., incluindo ou não
as fases da produção material e da distribuição". É o critério que vimos também
aplicado na Divisão de Música e Arquivo Sonoro da
Biblioteca Nacional e que se ajusta ao deslocamento do parque gráfico
para São Paulo de que já falamos. As categorias serão
numeradas, a saber:
1. Peças impressas na Bahia.
Aqui entrarão obras em que conste a indicação
BAHIA de modo proeminente, com ou sem data, sem qualquer indicação
de uma impressora ou gráfica de fora.
2. Peças editadas na Bahia por instituições
ou pessoas, mas impressas fora. Só serão consideradas
as situações em que o carimbo ou dados do editor baiano
estejam impressos. Será também necessário para
inclusão que no conjunto das obras de um dado compositor,
nesta categoria, haja evidentes sinais de vinculação
à vida baiana.
3. Casos duvidosos, em que vários
elementos apontam para a Bahia, mas não se tem certeza.
Além dos tipos acima, temos duas categorias negativas que se acrescentam ao acervo dos impressos baianos, apenas como um comentário,
um contraponto. Podem constituir apenas listas ou menções,
na maioria dos casos:
4. Compositores baianos ou radicados na
Bahia que sistematicamente optaram por publicar fora. É
o caso, por exemplo, de Sílvio Deolindo Fróes (1865-1948),
o maior compositor baiano de seu tempo. É o que também
parece ocorrer, em menor porte, com Camerino Sales, outro excluído
dos dicionários e enciclopédias de música brasileira.
No caso de Domingos da Rocha Mussurunga (1807-1856), um bom compositor,
seriam talvez as condições irrequietas de sua vida
(envolveu-se com a Sabinada, foi destituído de cátedra)
ou meramente o que sobrou de sua produção que sobrevive
em alguns impressos e manuscritos, no Rio de Janeiro e na Bahia.
5. Peças particularmente significativas
para a Bahia, de autores baianos, quer tenham ou não publicado
na Bahia, mas que foram editadas e impressas fora. Imagine-se,
por exemplo, de Xisto Bahia, o lundu famoso "Iaiá, você
quer morrer". Se bem que Xisto, em sua carreira de ator, tenha
percorrido o país de norte a sul, causa estranheza a publicação
com o título germanizado para "Ja Já, Você
Quer Morrer", pelo editor Eugéne Hollender, em São
Paulo.
6. Os expurgos. Esta é uma
categoria para uso interno. São peças que nada têm
a ver com nossa pesquisa, mas que ainda assim integram arquivos
baianos e que por isto mesmo devem ter tido alguma relação
com a vida musical da Bahia, tênue que seja. Em
princípio, não as incluiremos.
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